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UM GRITO ATRÁS DA PAREDE III: O ENCONTRO

O ENCONTRO 



  - ei, mah... tu soube?

- O que houve?

- Sabe aquele casal que mora ali do teu lado... que tem até aquele cara que tentou partir pra cima de tu outro dia?

- Sim, que tem...

- Tu soube?

- Soube do quê?

- Parece que ela fugiu!

- Como é que é?

- Pois é... outro dia, quando tu não tava ai! Eles se mataram de brigar... parece que ela esperou ele dormir, destelhou o teto, pulou e saiu corrida, levando mala e tudo... Diz-que depois apareceu polícia, levou ele algemado...

O vizinho que morava do outro lado e que também sempre ouvia as brigas deles tinha me contado isso, quase dois meses depois daquele cara ter tentado partir pra cima de mim. Durante todo aquele tempo eu tentava evitar os dois o máximo que podia, já que não tinha como pagar outro lugar pra morar no momento. Tentava ver com o Jorge se ele não queria dividir um apartamento num condomínio lá na Cidade dos Funcionários, mas o idiota não quer largar a vida de rei que tem morando na casa da avó e das tias. As velhas fazem tudo que ele quer... também, quem iria trocar isso pra dividir um apartamento com um ex-colega do Ensino Médio? Quem pode julgar o cara por isso? Quer dizer, não é a atitude mais madura, mas quem no lugar dele teria coragem de fazer diferente? Eu estava saindo no sábado de manhã pra fazer as corridas naquele dia, quando ele me contou. Poucos minutos após a gente se despedir eu tinha entrado em casa pra ir buscar o celular que havia esquecido quando escuto a voz de Lourdes na porta de casa:

- Jardel?

Esqueci que tinha esquecido a porta entreaberta.

- Oi – respondi de dentro de casa – só um minuto!

Sai, segundos depois, e não pude evitar de olhar instintivamente ao redor para ver se o marido dela estava ali perto.

- Tudo bem, ele não tá por aqui. Ele tá viajando à trabalho. Esse é o trabalho dele, dirige caminhão de carga. Só que, de uns tempos pra cá, ele tava sem trabalho. Ele fica nervoso quando fica muito tempo em casa e acaba, às vezes, passando da conta... sai e bebe, quando volta, bem... às vezes exagera...

“Só ‘as vezes’?” pensei

Não disse nada, só a olhava com um olhar incrédulo e uma sensação de confusão. Afinal, ela não tinha fugido dele? O cara não tinha dito que ele tinha sido levado pela polícia? Que houve?

- Tá certo... – foi só o que consegui dizer.

- Olha Jardel, será que a gente pode conversar numa boa? É rapidinho... não vou tomar muito do seu tempo não...

- Tô indo pro trabalho agora, tô sem tempo...

- Mais não vai demorar... prometo... olha, bem ali tem uma pracinha, a gente vai lá e senta só um minuto... tá bem?

Fiquei sem saber o que dizer.

- Por favor Jardel...

- Tá... tá certo...

No fundo, ela ainda era pra mim a Lourdes de outro tempo.

Era coisa de umas oito da manhã. A luz do sol atravessava a copa das árvores, cuja sombra se projetava no rosto dela. Tinha chovido mais cedo e o ar estava úmido e agradável e não tinha aquele clima seco e abafado que vinha tendo naqueles últimos meses, logo pela manhã. Na praça ainda tinha umas pequenas poças de lama. Crianças brincavam no parquinho, senhoras faziam caminhadas, garotos andavam com seus cachorros na coleira, enquanto uma ou duas pessoas de tênis corriam em círculos ao redor da praça. Apesar de estar movimentando, o mundo parecia ter ali uma espécie de paz e de quietude que me deixou mais tranquilo.

- Diga – disse eu, sentando ao lado dela naquele banco de madeira.

- Eu acho que te disseram que eu tinha saído de casa né? Não precisa fingir, eu sei que as pessoas falam. Também... como não haveriam de falar? Eu acho que se eu tivesse no lugar deles...

- O que você queria saber mesmo? – perguntei de forma direta, mesmo correndo o risco de estar sendo mal educado. Confesso que não sabia como me sentir. Estava meio magoado, mas o que realmente estava me sentindo era decepcionado. Decepcionado comigo mesmo por estar com tanto medo. Decepcionado com ela pelo fato de ter tentado ajudá-la e ela ter ficado do lado do marido que a agredia.  Principalmente, decepcionado por não conseguir aceitar o fato de que minha amiga de infância, a única pessoa que conheci que tinha tudo para ser feliz, ter se permitido ser arrastada para aquele inferno.

Ela fez perguntas sobre as pessoas da nossa época. Os amigos, os antigos colegas, os vizinhos, meus pais. Especialmente sobre como estava a mãe e os irmãos. Parece que não falava com eles há anos. Era como se tivesse voltado de uma longa viagem e quisesse saber de todos com quem convivemos um dia. Eu respondia como podia. A verdade é que depois de tantos anos, a gente acaba se afastando mesmo dos amigos mais próximos, a maioria das perguntas eu não soube responder. Mesmo com redes sociais, a gente não consegue manter muito contato.

O sol que atravessava as folhagens e caía sobre seu rosto parecia dar outra cor à expressão do seu olhar, quase como se ela tivesse mais uma vez voltado a ser a garota que eu conheci. Sei que é um pensamento meio cafona, mas não deixava de ser uma coisa agradável pra mim. Durante aquele pequeno tempo, dividíamos lembranças e compartilhávamos notícias de conhecidos que tínhamos em comum. Foi como se, por alguns instantes, eu tivesse mais uma vez a minha amiga de volta. Me convenci que ela era o tipo de pessoa que você poderia passar anos longe, mas, quando voltasse a reencontrar, seria como se tivéssemos nos encontrado no outro dia. Ríamos e nos divertíamos como se, por alguns minutos, tivéssemos voltado a ser crianças. Mas o clima não continuou leve por muito tempo:

- Jardel, eu vim aqui pra te dizer que eu vou voltar a morar com ele... por favor, não me olhe assim. Eu tava morando na casa de uma amiga. Depois da última confusão, ele apareceu lá numa boa e a gente conversou. Ele disse que tinha arranjado trabalho e que não ia mais fazer aquilo comigo. Eu prometi que ia voltar e que ia tá lá em casa esperando por ele quando voltasse. Eu sei, sei que você tá me julgando, não precisa dizer nada... dá pra ver pela tua cara. Olha, eu sei que tu não tem motivo pra confiar, mas eu conheço ele a minha vida toda. Eu sei que agora vai ser diferente.

- Por que agora vai ser diferente? – disse eu incrédulo.

Ela se virou olhando para as crianças brincando de escorrega e depois olhou para mim dizendo:

- Vai ser diferente... confia em mim! Você não vai mais precisar se esconder, nem deixar de falar comigo. Ele nunca mais vai fazer isso... cê vai ver só.

Eu sabia que não tinha motivos para acreditar. Na verdade, ela mesma também sabia, mas tudo que eu dissesse não seria suficiente para convencê-la do contrário. A única coisa que disse foi:

- Tudo bem, se você tá dizendo.

A conversa havia sido há quase uma semana. De fato, não se ouviu mais brigas nem confusões vindas da casa dele, mas me disseram que ele só estaria em casa no final da semana, quer dizer...

Hoje!

CONTINUA...


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