UM GRITO ATRÁS DA PAREDE I: QUEM SÃO OS SORTUDOS?
ADVERTÊNCIA
A
história que começa aqui e que continuará a ser postada ao longo desta semana,
embora não faça alusões diretas à violência nem contenha descrições imediatas
de cenas violentas, não deixa de fazer alusão à um tema bastante sensível a
muitas mulheres, que, inclusive, tiveram de enfrentar situações iguais ou
bastante próximas à uma das personagens desta história. Por este motivo devo
alertar que, mesmo não lidando com a violência gráfica, a história que se
seguirá tem como seu tema principal a questão sobre relacionamentos abusivos
que, por vezes, cruzam a linha da violência. Caso você não se sinta bem em
lidar com esses assuntos, por favor, salte a história desta semana.
Afinal...
Nunca
é apenas uma história, é também a sua vida!
Michael Melo Bocádio – 25/09/2025
QUEM
SÃO OS SORTUDOS?
Ônibus
se distanciando da parada, enquanto corro para alcançá-lo.
Aumento
a cadência da marcha enquanto sinto me aproximar. O coração parece pular de
felicidade quando, finalmente, consigo tocar a barra de alumínio da porta e
subo rapidamente as escadas, exatamente no instante em que a porta se fecha
atrás de mim. Olho para o motorista que ri do meu esforço. O idiota bem que
podia ter esperado! Se eu perdesse esse, teria de esperar por quase duas horas
pelo CORUJÃO e sabe-se lá que horas que eu ia conseguir chegar em casa. Foi
vacilo esperar até dez e meia pro professor terminar a aula, mas as provas da
faculdade são na semana que vem e eu tô pagando muito caro essa disciplina pra
correr o risco de repetir ela de novo no semestre que vem.
Não
tinha quase ninguém, só eu, o motorista e um homem dormindo na cadeira mais
alta do lado da janela. Acho que ele tá bêbado. Tomo o assento do outro lado e
finalmente tiro a mochila pesada. Respiro aliviado. O sono começa a me pesar
nas pálpebras. Droga, desse jeito eu não sei se vou conseguir acordar cedo pra
ir no trabalho amanhã, mesmo programando o alarme do celular.
“Cara,
tinha que ser proibido trabalhar no sábado! Porra, é o pior dia que tem pra
acordar cedo! Vou ver se eu durmo ao menos umas quatro horas...”
O
Jorge me disse que não era pra eu ter saído de casa e ir morar sozinho. Bem que
ele falou que se não dá pra alugar um apartamento que preste, melhor continuar
morando com os pais. Realmente! Mesmo fazendo bico de motorista de aplicativo
nos finais de semana, o dinheiro que eu tenho mal paga o aluguel e as contas.
Tanta grana pra morar numa casa que fica num fim de mundo... uma vila que é
parede com parede. Ainda tem o cheiro podre que vem do canal, o lixo e a água
de esgoto no meio da rua, as muriçocas e os mosquitos!
Começa
a chover. Fecho a janela.
“Droga,
a rua vai tá toda enlameada... isso sem contar as goteiras... se essa chuva
demorar muito tempo a casa vai tá toda ensopada quando eu chegar”
-
Tomara que essa chuva não demore muito – digo a mim mesmo.
“O
Jorge fala essas coisas porque ele não sabe como era... não tinha como eu
continuar morando com meus pais”.
Olha,
eu sempre tive amigos que eram filhos de pais separados. Onde eu cresci era
muito difícil ver uma família com um pai, uma mãe, etc. Ou quem criava era só a
mãe, ou os avós, ou uma tia, até madrinha... Tinha gente que sempre dizia que
eu tinha sorte de ter crescido com pai e mãe. Os garotos que tinham muitos
irmãos falavam que eu tinha sorte de ser filho único. Só que eles nunca
souberam que eu é quem tinha inveja deles. Será que eles acham que é legal
crescer com seus pais brigando o tempo todo, fingindo pra todo mundo que são um
casal-modelo? Será que é legal passar por tudo isso sozinho? Sem ter com quem
conversar, nem quem te ajudasse a fugir de tudo aquilo?
Engraçado,
né?
A
gente sempre acha que os outros é que têm mais sorte que a gente na vida.
Todo
mundo achou até legal o fato de eu ter saído de casa tão “novo” – como se ter vinte
e cinco anos fosse ser jovem demais! – mas eu saí de casa pra não ter de
conviver com meus pais... Tem gente que diz que eu tive sorte de encontrar uma
casa por aquele preço, em compensação, tem a lama, as goteiras, os mosquitos,
sem contar o...
“Tomara
que eles não briguem de novo!”
-
Lourdes... – murmuro comigo mesmo.
Falando
em gente sortuda, eu sempre achei que não tinha ninguém que tivesse mais sorte
que a Lourdes.
Ela
sempre foi boa aluna na escola. Estudei com ela desde o primário. Ficamos na
mesma escola até o fim do fundamental. Sempre tirava boas notas. Todos
conheciam ela porque todo ano ela fazia apresentações nas festas e eventos
culturais que a escola organizava. Fui na casa dela algumas vezes pra fazer
trabalhos de escola. Os pais dela eram gente boa. Essa sim, eu pensava, essa
era uma pessoa de sorte de verdade. Durante toda aquela época, cresci com os
adultos falando a respeito dela coisas como:
“Ah,
a Lourdes vai ser alguém na vida!”
Ou:
“Tu
viu como a Lourdes é inteligente?!”
Ou
ainda:
“Ela
é muito talentosa”
Até
mesmo algo como:
“Cara,
essa menina tem todo um futuro pela frente. Ela pode escolher ser o que quiser
que vai ser uma pessoa muito importante... tenho certeza!
Me
acostumei com a minha mãe sempre dizendo:
“Por
que é que tu não pode ser que nem a filha da Dona Teresa?”
O
tempo passou. Mudei de escola. Me formei no Ensino Médio e logo fui procurar
trabalho. Depois foi um sair e entrar de emprego. Sair e entrar. Meu pai vivia
me enchendo:
“Meu
filho, o que você tá fazendo da sua vida? Você tá jogando sua vida fora só
trabalhando em bico. Esses empregos que você arruma pagam mal e você não vai
conseguir nenhum futuro saindo de um trabalho e entrando em outro!”
Meu
pai não estava preocupado apenas comigo, mas com sua própria carteira. Na época
eu já tinha vinte e um anos. Ficava mais difícil encontrar trabalho e, mesmo
quando encontrava, o que eu ganhava não dava para muito. Ele tinha de arcar com
as contas, mesmo quando eu estava trabalhando.
Nessas
horas eu sempre pensava na Lourdes. Afinal, como ela estaria? Teria feito
vestibular? Já estaria formada? No que estaria trabalhando? Não me entenda mal,
não é que eu sentisse alguma coisa a mais por ela. Era um sentimento de
curiosidade. De expectativa. Como um personagem de uma série ou de uma novela
que a gente gosta, mas não sabe que fim esse personagem teve. Eu estava naquela
época ocupado demais em sobreviver pra pensar em gostar de alguém. Só queria
saber de ligações casuais.
Foi
quando as coisas em casa mudaram de mal para péssimo. Depois, de péssimo para
insuportáveis. Meus pais brigavam um com o outro o dia inteiro, mas agora eu
brigava com meu pai, com minha mãe e com os dois. Numa coisa eles concordavam: em
se meter na minha vida!
Tomei
uma decisão.
Dispensei
todos os empregos temporários. Priorizei trabalhos que não fossem mais
temporários. Não procurava nenhuma ocupação específica porque não tinha curso
universitário. Mas até isso eu queria mudar. Se quisesse parar de ter essa vida
de temporário, iria ter de voltar a estudar. Encontrei uma vaga de zelador no
prédio onde ficava a ASSOCIAÇÃO DE JORNALISTAS DO CEARÁ, no Centro, me inscrevi no PROUNI e prestei ENEM no final
daquele ano. Na época eu já estava com vinte e três anos. Comecei a tentar
juntar dinheiro e rezar pra ter conseguido créditos suficientes que me
permitissem fazer alguma coisa de que gostasse. Se eu tinha de passar o resto
da vida trabalhando, que fosse ao menos em algo que eu me sentisse bem fazendo.
Escolhi
Arquitetura, e, como segunda opção, Desing de Interiores.
Os
dois eram cursos caros e talvez eu não tivesse conseguido já que há anos eu não
estudava nada, mas que inferno!... e daí? Enquanto aguardava o resultado, fiz
um curso de autoescola. Na época começaram a aparecer os motoristas de
aplicativo e pensei que se tivesse passado, eu teria de fazer uma renda extra
que me ajudasse a pagar o curso. Mas, acima de tudo, eu queria qualquer coisa
que me fizesse estar longe de casa.
Em
março, quando finalmente passei na prova do DETRAN, veio a notícia de que tinha
conseguido créditos pro curso de Desing de Interiores numa faculdade
pequena, mas que ficava perto do Eusébio. Acordava todo dia às quatro da manhã
e chegava no Centro às seis, porque tinha de começar a limpar as salas antes do
expediente começar. Tinha uma hora de almoço e continuava até às cinco da
tarde, quando tentava correr pra não perder a condução. Nos finais de semana eu
alugava um carro e tentava fazer o que podia dirigindo até tarde da noite.
No
final do primeiro semestre eu parecia um zumbi, mas me peguei pensando...
“Onde
será que a Lourdes estava agora?”
Alguns
ex-colegas que reencontrei pelas redes sociais me disseram que ela tinha se juntado
com um cara logo que tinha terminado o Fundamental, que tinha brigado com a
família pra conseguir autorização pra casar e, no final, tinha ido morar com o
marido no interior. Achei aquilo tudo uma maluquice! Uma mentira sem-tamanho,
só pode! Que é isso? Justo a Lourdes? A única garota realmente sortuda do nosso
bairro se perder desse jeito... Não! Só pode ser conversa de gente invejosa...
Àquela
altura, mesmo pagando as contas de água e de internet, meu pai queria que eu
pagasse a conta de luz e ajudasse com o aluguel. Eu disse que não podia, que
isso ia comprometer o dinheiro pra faculdade e ele disse:
-
E daí? Além disso, tu não vai conseguir nada com esse curso mesmo! Vê se esse
negócio aí dá emprego pra alguém? Hah! Tu fez essa faculdade aí só pra sair de
casa, que eu sei!
Foi
a gota d’água!
Era
tarde da noite e eu tentava estudar quando ele disse aquilo. Me controlei para
não gritar, nem partir pra cima dele... afinal ele ainda era meu pai! Mas não
consegui mais pensar em nada. Apenas levantei, fui até o meu quarto. Coloquei
todas as coisas que cabiam na minha mochila e disse:
-
A partir de hoje, meu pai, fique tranquilo que o senhor não vai mais gastar
dinheiro comigo! Eu não posso pagar muita coisa, mas posso lhe diminuir a
despesa tirando uma boca pro senhor sustentar. Amanhã eu passo e pego o resto...
Ele
não disse nada. Talvez nem acreditasse que eu tivesse coragem pra fazer isso.
Minha mãe é quem ficou falando, falando, falando... dizia que isso era bobagem,
que eu não tinha pra onde ir, que era melhor ficar em casa e ir dormir, esperar
o dia amanhecer... No fundo, eu tinha medo de que, se perdesse a raiva que eu
tinha naquela hora, talvez não tivesse mais coragem pra fazer o que queria
fazer. Logo, meu pai deixou o silêncio e começou a falar, só que o contrário de
minha mãe estava diznedo:
-
Deixa Maria da Graça, deixa... ele quer ir, que vá! Se ele pensa que viver às
próprias custas vai sair barato ele que tá muito enganado... só não venha
depois voltar aqui e...
-
Voltar? O senhor acha que eu quero voltar a morar nesse inferno que o senhor e
a mãe fazem, vivendo num casamento só de aparência?! O senhor tá muito
engana...
O
tapa veio sem que eu percebesse.
O
rosto me ardeu, enquanto senti a vista embaciada, a dor nas têmporas e o corpo
inclinando de lado, vergado pelo peso da mão do meu pai.
-
Maria, amanhã tu arruma as coisas dele e bota aí na entrada de casa. Não
precisa nem entrar... só passar e do jeito que vier, você volte. E o seguinte:
não precisa mais nem me pedir a benção, nem falar comigo quando me encontrar
por aí. Se me eu ver você na rua, pode ter certeza que vou atravessar o outro
lado pra não ter de cruzar com...
As
lágrimas saíam do meu rosto, mesmo que não estivesse chorando. Não sabia o que
tinha doído mais, se o tapa ou que ele estava dizendo. Mas não esperei que ele
terminasse... bati a porta e saí.
Fiquei
vagando por quase uma hora a esmo, sem ideia do que fazer, nem pra onde ir, mas
lembro do que havia pensado enquanto caminhava:
“Com
certeza a Lourdes nunca teria passado por isso... ela deve é de tá numa casa
boa, morando num bairro de classe média... vivendo bem... ela sim que teve
sorte na vida...”
Duas
semanas depois, quando me mudei para a vila onde agora estou morando, eis que
encontro, depois de tantos anos:
-
Lourdes? – disse eu quando, numa tarde de sábado, saía para ir pegar o carro e
começar as corridas, quase não pude acreditar!
-
Oi? Desculpa, eu conheço você?
-
Oi Lourdes, eu sou o Jardel! Estudei com você na Escolinha da Dona Domitila,
depois no Colégio São Matheus, lá no Bom Jardim! Lembra?
-
Jardel? Ah, o menino que gostava de desenhar!?
-
Isso!
-
O filho da Dona Maria das Graças e do seu Jonatas...
-
Exatamente!
-
Ah meu Deus!
O
olhar de surpresa, o sorriso de alegria e o abraço que se seguiu pareceram dizer
que ela finalmente tinha me reconhecido. Ela não parecia ter mudado muito. O
rosto tinha ainda a mesma aparência infantil, mas haviam rugas na testa e
linhas de expressão embaixo dos olhos e nos cantos da boca, uma certa tristeza,
uma preocupação no olhar pela maneira como olhava em volta, como se achasse que
estava sendo seguida ou vigiada... tudo isso foram coisas que eu só percebi
depois, relembrando esse encontro. Naquele momento estava tão feliz que:
-
E aí? – disse ela – O que você tá fazendo por aqui?
-
Ah, eu tô morando aqui agora. Aluguei por um tempo. Me inscrevi no Minha
Casa, Minha Vida e tô esperando ser chamado... se Deus quiser. E você? Você
tá visitando alguém? Uma vizinha? Parente?
Nunca
me passou pela cabeça que:
-
Não, não... é que eu mo...
-
Lourdes! – disse uma voz masculina vindo de dentro de casa – Tá fazendo o quê
aí fora?
Logo
depois, apareceu na porta um homem mal encarado. Parecia ser uns dez anos mais
velho que ela. Tinha um olhar desconfiado, sem blusa, cheio de tatuagens com
caveiras, cobras, facas... elas se espalhavam pelo peito e nos braços. O cabelo
bagunçado, barba por fazer, um princípio de barriga.
-
Clodoaldo, esse é o menino com quem eu estudei na época do colégio. Ele tava
falando que agora tá morando aqui do lado e...
-
Tá... – disse ele como se não acreditasse no que ela estivesse dizendo. Depois,
voltando-se pra ela – Tem que sair pra fazer as compras. Se não for agora, a
gente vai pegar fila no supermercado.
-
Tu tá com o cartão?
-
Tá lá dentro...
Ela
se virou para mim, com um olhar preocupado, se despediu e logo entrou. O homem me
olhou com uma cara feia, entrou atrás dela, fechando a porta, mas ainda pude
ouvir ele falando:
-
Que é que ele queria contigo...
Foi
só à noite, quando voltei das corridas e ouvi os gritos através da parede fina
que aceitei o fato de que ela morava ali e que vivia com aquele cara. Os
gritos, desde então, se repetiam toda a noite e, às vezes, entravam madrugada a
dentro.
E
a pessoa que sempre achei que era a criatura de maior sorte do mundo:
“Meu
Deus do céu! O que houve com ela?!”
Quem
são realmente as pessoas de sorte?
Será
que elas existem, ou sorte é só uma coisa que a gente inventa pra tornar a
nossa vida mais suportável?
As
gotas de chuva caíam pelo vidro da janela do ônibus enquanto me mostrava a
imagem de Lourdes e o seu olhar de horror e medo...
CONTINUA...
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