UM GRITO ATRÁS DA PAREDE II: O ECO DAS PAREDES
O
ECO DAS PAREDES
Bom,
pelo menos não tinha que esperar outro ônibus no terminal pra ir pra casa.
Daqui dá pra seguir a pé.
“Droga,
vou chegar quase meia-noite em casa. Só porque eu queria estudar alguma coisa
antes de ir dormir. Melhor comer alguma coisa e...”
-
Droga – digo a mim mesmo – não tem nada na geladeira! O salário só cai na conta
na sexta! Merda!
Olho
em volta procurando um supermercado ou uma padaria aberta, mas tudo tá fechado
e é escuro até... Sim... isso mesmo! Beleza! Dá pra ver aqui as luzes do posto
de gasolina que tem no outro quarteirão. Deve ter alguma coisa que eu possa
comprar pra comer.
Dez
minutos depois estava no CAIXA da loja de conveniências do posto, pagando no
cartão por duas caixas de comida congelada.
“Droga,
meu salário vai ser só pra pagar a fatura desse cartão! Se eu não tirar uma boa
ponta nesse final de semana o aluguel vai ter de atrasar!”
-
Por que é que a gente diz que quer ser adulto quando é criança? – murmuro
comigo mesmo.
“Será
que eles vão ficar brigando a noite toda de novo? Cara, nem consigo acreditar, é
a Lourdes!”
A
primeira vez que ouvi brigarem foi na mesma noite em que reencontrei Lourdes
pela primeira vez. Tinha voltado tarde de uma corrida e tive de pagar um extra
pra um cara que tinha estacionamento particular perto da minha casa, porque não
dava mais pra devolver o carro e não tem garagem na vila onde eu moro. Estava
morrendo de fome, mas não tinha mais forças pra ficar de pé. As costas e as
pernas doíam de ficar tanto tempo sentado. Deitei na cama, jogando os sapatos e
desabotoando a calça. Já sentia o sono vir chegando quando uma pancada surda
fez tremer a parede do lado da cama.
TUM!
E
o grito que se seguiu:
-
AAAAAAAAH!
O
susto foi tão grande que caí da cama e o sono logo foi embora. Do lado onde era
a casa deles vinham vozes meio abafadas pela parede, onde se podiam ouvir
trechos das conversas.
“...de
conversinha na porta de casa? Tem respeito pelo teu marido não...”
“Eu
não sabia quem era. Nem lembrava dele, nem...”
“Tu
pensa que engana quem sua vagabunda...”
“...lha
lá como tu fala comigo que eu não só nada di...”
Barulho
de objetos quebrando.
“...panhar
pra aprender! Aprender que tu tá falando é com um homem...com teu marido... né
com esses baitola do teu colégio não!”
“Ai
pára... PÁRA! PÁRA! PÁRA! AAAAAAAAAAH!!!!”
-
Meu Deus... ele vai matar ela!
Pego
o celular, ligo:
-
Alô, disque-denúncia!
-
Oi, queria fazer uma denúncia aqui na casa do meu vizinho... eu tô ouvindo
aqui... ele tá agredindo a mulher dele, tem como chamar alguém aqui pra prender
ele?
-
Senhor quando e onde ocorreu a agressão...
-
Você não tá entendendo... a agressão tá acontecendo agora... ele vai matar ela
se vocês não chegarem lo...
-
Por favor, nos dê o seu endereço...
-
Anote aí...
Não
sei dizer quanto tempo depois, se foram horas ou minutos, porque cada segundo
pareceu uma eternidade, mas em algum momento pude ouvir o barulho da sirene. Batidas
na porta:
-
Aqui é a polícia. Recebemos uma denúncia de agressão. Por favor, abra a porta e
venha aqui prestar esclarecimentos...
Som
de chave sendo virada, a porta abrindo e discussão entre o homem e os guardas.
Só quando os dois foram levados que tive coragem de cair na cama. Mesmo assim,
o sono demorou a chegar... minha cabeça reprisava os gritos... na minha mente
via a garota dos meus dias de infância.
Lourdes
tirando boas notas...
“...de
conversinha na porta de casa? Tem respeito pelo teu marido não...”
Lourdes
se apresentando na peça da escola...
“Tu
pensa que engana quem sua vagabunda...”
Lourdes cantando em apresentação escolar:
“Ai
para... PÁRA! PÁRA! PÁRA! AAAAAAAAAAH!!!!”
-
Como ela continua com um cara desses?!
Acho
que o sol estava amanhecendo quando finalmente consegui pegar no sono. Ainda
bem que era domingo. Dormi o dia todo. Na segunda-feira pela manhã, me
surpreendi com o marido aparecendo na minha porta quando saía para ir ao
trabalho. Gritava. Dizia nomes feios. Me chamava de alcoviteiro. Eu tentava
dialogar, perguntava o que ele tinha contra mim, dizia que não tinha lhe feito
nada. Ele dizia que não me fizesse de sonso; que sabia que tinha sido eu quem
tinha falado com a polícia; que eu não tinha nada que ver com a relação dos
outros... empurrava-me, avançava sobre mim, tentava me intimidar enquanto
permanecia no meu lugar tentando acalmá-lo.
De
repente ele subiu a blusa e pude ver, saindo de dentro das calças, a coronha de
um revólver. Ele já estava prestes a colocar a mão ali quando apareceram dois
ou três conhecidos dele. Lourdes também apareceu e tentava acalmá-lo. Me olhava
visivelmente alterada. Haviam hematomas vermelhos no olho esquerdo e no canto
direito da boca.
-
Vai embora – disse ela – vai que eu vou falar com ele. Vai logo.
Saí
enquanto o seguravam e ele me dizia nomes horríveis.
Pensei
seriamente em não voltar para casa naquela noite. Mal pude me concentrar nas
aulas. Peguei o último ônibus e fiquei rezando para que ele estivesse esquecido
aquilo tudo, ou que pelo menos, já estivesse dormindo.
“Droga...
será que eu vou ter de deixar o imóvel por causa desse filho da...”
Não
aconteceu nada, nem naquela noite nem nas noites seguintes.
Aquelas
lembranças ficavam voltando à minha mente enquanto saía da loja de
conveniências e tomava o meu caminho. Tentava agora evitar as poças e rios de
lama feitos pela chuva enquanto andava e matava os mosquitos que me picavam o
pescoço. Estava quase perto do meu quarteirão. Um misto de sentimentos
diferentes me veio quando virei a esquina e a visão da vila onde morava se
aproximava de mim. Todos os meus pensamentos terminavam com uma única e mesma
frase:
“Será
que vai acontecer de novo?”
CONTINUA...

Comentários
Postar um comentário