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ESTRANHAS I - CASAL

 

CASAL


Seu olhar atravessa a distância e flagra um garoto fazendo uma careta de reprovação. Surpreso ao ser flagrado, ele logo baixa os olhos, envergonhado. Para evitar que o constrangimento fosse ainda maior, atravessa para o outro lado a rua, evitando cruzar com o casal.

- Invejoso! – Disse ela, depois do homem incomodado ter cruzado a rua.

- Alice? – pergunta o namorado que não fazia ideia do que tinha acontecido até então.

- Diego, sabia que aquele cara ali na frente atravessou a rua pra não ter que passar pela gente?

- Valha! Como é que tu sabe?

- Ele olhou pra cá com a maior cara de besta antes de passar pro outro lado!

- Tu viu?

- Tu não viu não?

- Como é que eu ia reparar no povo se a gente tava se beijando.

- Ah, mas eu reparei!

- Valha, e tu tem olho até na nuca agora, é?

Sorriu satisfeita.

Adorava quando lhe diziam que era observadora.

“E sou mesmo! – pensava consigo mesma – Pelo menos me esforço pra ser. E que bom que ele sabe! Assim vai pensar duas vezes antes de tentar me trair. Tá... pode parecer neura minha, afinal a gente tá junto só há umas duas semanas. Mas vai saber né? Como diz a minha mãe: ‘É homem!’ Nossa, faz tanto tempo que eu não saio com um cara, esqueci como homens são a coisa mais distraída da face da terra. Fosse a... ah, deixa pra lá, agora esquece!”

Lembrava-se de uma vez no colégio, quando conversava com suas duas amigas Lourdes e Celeste, no intervalo da escola, e uma estranha que sempre quis falar com elas tentou entrar na conversa. Elas mal deram atenção e Alice mal tinha olhado para a garota, quando, ao final do intervalo, já entrando na sala, Alice perguntou se elas tinham reparado na mancha de gordura que havia na gola da blusa que a estranha usava.

- Valha, eu nem vi! – Disse Celeste.

- Nem eu! – Falou Lourdes.

- Mulher – disse Celeste – ela não ficou nem dois minutos com a gente e tu já tinha reparado até na mancha da blusa dela... Nam! Olha eu quero morrer tua amiga viu!

Alice ria consigo mesma lembrando daquele fato. A sensação que experimentara na época era exatamente a mesma que sentia agora quando seu novo namorado lhe dizia que era observadora.

“Tem gente fingida que diz que não gosta de ser elogiada – pensava ela – mas eu acho que isso é moh mentira! Todo mundo gosta quando as pessoas reparam nas coisas que a gente faz bem. Além disso o que é que eu posso fazer? É um dom né! Tem gente que têm, tem gente que não! Posso fazer nada! Se fosse uma coisa que não fosse verdade, aí tudo bem, eu ia dizer que era foda, mas se a gente é boa mesmo numa coisa, que é que tem da gente se sentir bem em ser elogiada em algo que a gente consegue fazer melhor que os outros? Né não?! Eu penso assim!”

Era fim de tarde. O sol se inclinava por trás dos prédios e casas, as ruas se enchiam de carros e as calçadas se apinhavam de pessoas saindo do trabalho, garotos e meninas com uniformes, saindo da aula, aglomerando-se nas paradas de ônibus que vinham lotados.

“Celeste dizia que queria morrer minha amiga, mas foi só mudar de turma no ano seguinte que ela nem falou mais comigo nem com a Lourdes. Foi até legal porque naquele ano eu e a Lourdes, a gente se aproximou mais, mas foi só no último ano do Ensino Médio que a gente nunca mais se viu, nem se falou. Teve só aquela vez que as duas me adicionaram na rede social delas, mas nenhuma disse mais do que uma palavra. Hah! Isso é que são amigas!”

Melhor era não pensar mais nessas coisas.

Afinal, a tarde tinha sido tão boa até agora.

Aquele idiota que mudou do lado da rua confirmou a certeza que tinha de que eles ali eram o centro das atenções. Muita gente fazendo cara de quem acha estranho; logo ao seu lado, podia jurar que uma a senhora com quem haviam cruzado tinha lhe projetado um olhar de espanto. Sente que por onde passam, os olhares voltam-se para eles e essa sensação lhe traz um sentimento de júbilo.

“Pode ser que eu ‘steja sendo pretensiosa, afinal, quem vai reparar num casal se agarrado e se beijando enquanto tá andando pela calçada na hora do rush em plena Av. 13 de maio, em frente à igreja de N.S. de Fátima?! Eu sei que parece exagero, que a gente podia até parar e andar direito, mas é tão gostoso andar assim com ele, sentir o braço dele abraçando o meu corpo. Beijar aquela boca! Meu Deus eu podia passar o dia inteiro beijando os lábios dele! O miserável beija bem e pior é que ele sabe disso! Por isso que não posso dar bobeira. Ai meu Deus, ele tá beijando meu pescoço! Gente, fico toda arrepiada!”

Fosse pelo fato de ter sofrido tanto em outros relacionamentos, fosse por entender que Diego estava indo rápido demais, ela estava decidida a dar as cartas daquela vez: “Vou fazer você comer na minha mão, vai ver só!” – disse consigo mesma – E pra começar, vai me acompanhar até a parada do meu ônibus, lá na Av. da Universidade”.

Podia parecer exagero fazê-lo andar tudo isso, mas, na verdade, Alice entendia que aquilo era a obrigação de qualquer namorado! Vê se tem cabimento ela ter de andar toda aquela distância entre a Igreja Nossa Senhora de Fátima e a Av. Carapinima sozinha para pegar a condução de volta pra casa! Tá vendo!

“Não achou bom passar a tarde comigo na praça, a gente se agarrando e se beijando?!”

O mínimo que ele podia fazer era se oferecer pra ir com ela até o seu ponto de ônibus, não?! Se ele não se ofereceu, pois bem, ela faria questão!  Que se vire pra pegar ônibus depois! E se fosse assaltada, ou coisa pior?

Ela bem que podia pegar UBER... se tivesse grana!

Saíra de casa às pressas... e escondido! Só tinha o cartão do ônibus e a carteira de identidade na bolsa. Durante todo o tempo em que estiveram juntos estava olhando as horas no relógio do celular, pois tinha de chegar antes da mãe voltar do trabalho! Ele bem que podia pagar a viagem de UBER, né? Claro! Alice até considerou essa possibilidade, mas lembrou que ele tinha acabado de começar no trabalho... todo esse encontro tinha sido totalmente improvisado!

Ela concluiu que ele deveria estar realmente sem dinheiro porque, se pudesse, provavelmente teria lhe convidado para ir à um motel. As mãos, os beijos e as carícias iam até onde era possível em um lugar público... às vezes até um pouco além! Pensando bem agora, Alice concordou consigo mesma de que tinha sido melhor assim!

Para um primeiro encontro, pelo menos!

Quero ter certeza de que ele quer ficar comigo antes de transar com ele. Vai que ele some... Não ia ser a primeira vez que isso acontece! Não ia ser uma surpresa se isso acontecesse de novo. Com os homens nunca dá pra saber quando eles tão levando a coisa a sério ou quando sendo apenas uns escrotos!

Haviam se conhecido num aplicativo de relacionamentos e agora, dois dias depois de terem se falado pela primeira vez, estavam em seu primeiro encontro. Andavam lado a lado, agarrando-se, beijando-se, despertando a inveja dos solteiros e os brios morais das velhinhas conservadoras que iam para a missa das seis na Igreja de N. Sra. de Fátima.

“Será que eu desativo o app e paro de falar com quem eu já tava conversando? Ele disse que ia fazer isso hoje, que até entregava o celular na minha mão pra eu ver se ele ainda tinha daqueles ‘contatinhos’... mas vai lá saber! A gente começa hoje e depois de duas semanas já ia tá terminando? Quer dizer... nem terminar o povo termina mais. Simplesmente fazem de conta que não têm mais nada como se não tivesse acontecido coisa alguma. Ah, mas ia ser tão bom se desse certo! Tá sendo tão bom até aqui! Até que o caminho não é tão longe, pelo menos não se você vai assim... beijando, sorrindo, grudada no gato que cê tá afim... sabe isso me fez lembrar dum negócio meio cabuloso: uma vez o professor de História Geral tava contando a história da lenda de como surgiram as almas gêmeas.

Lembrava do rosto rechonchudo do professor, o cabelo desarrumado e a blusa que saía de dentro da calça. Usava quelas blusas de flanela horríveis, sempre amarrotadas, onde parecia que, a qualquer momento, a barriga faria explodir um dos botões. Ele disse que, no começo, as pessoas tinham duas cabeças, quatro mãos e quatro pernas... dois sexos! (“Credo!”) Um dia, um deus lá que ela não sabia quem, ficou com inveja dos seres humanos, não se sabe porquê (“eu não tava prestando atenção porque tava falando com a Celeste sobre o horário que a gente ia pro cinema”) e, putz!, jogou um raio nas pessoas. Aí todo mundo ficou só a metade: uma cabeça, duas mãos, duas pernas... um sexo... do jeito que a gente é hoje. Mas não tinha sido só o corpo que ficou só de uma banda. A alma também. Aí depois os deuses tipo misturaram todo mundo pra que cada um passasse o resto da vida procurando sua metade. Tudo por causa de um deus recalcado que não tinha o que fazer a não ser deixar a gente infeliz!

Na hora Alice achou aquela lenda totalmente sem noção... Mas agora... assim... do jeito que estavam... Será que havia encontrado sua alma gêmea? Não era algo que realmente estivesse disposta a acreditar, mas, ao mesmo tempo, era uma ideia que começava a gostar. Ia ser bom saber que há alguém no mundo que sempre estaria com você. As pessoas que conhecera sempre iam e vinham e o tempo entre entrar e sair da sua vida ia ficando cada vez menor. Mas Diego...

“Eu tenho até mesmo a impressão que a gente é uma coisa só. O jeito que o nosso corpo se encaixa um no outro. A forma como a gente se toca. A maneira como a gente se entende. Parece até que a gente se conhece a vida toda! Ou de outra vida! Como se sempre tivesse procurado mesmo um pelo outro sem saber. Será que ele é minha alma gêmea? Vai saber! Quando eu tava no Colégio a Celeste falava que eu sempre dizia ‘eu te amo’ isso pra todo cara com quem eu ficava. Também me dizia que eu nunca sabia ficar quieta, que eu tava sempre saindo de um relacionamento pra entrar noutro... só faltava me chamar de vadia aquela invejosa! Mas a verdade é que eu tenho mesmo essa dificuldade de ficar sozinha. Será que é a minha alma que sente falta da alma gêmea?

Já estavam quase perto da Av. da Universidade, cruzando a entrada do IFCE...

- A gente tá só batendo no povo – disse ele –, vamo ter que andar só de mão dada... anda... me dá a mão Alice!

- Que pena, tava tão bom!

- Eu sei!

Empurrões.

Encontrões.

De repente, as mãos se soltaram. Ele toma à frente e...

TUM!


CONTINUA 


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