Seguidores

ESTRANHAS IV - EM CACOS

ADVERTÊNCIA:

O texto abaixo é a continuação da história iniciada na postagem de 04/08. Caso você esteja entrando aqui pela primeira vez, CLIQUE AQUI e leia o início da história!     


EM CACOS



Em casa.

No quarto.

Deitada com um cubo de gelo enrolado num pano sobre a testa. O teto parece estar girando.

“- Oi, tudo bem contigo?”

“- Oi, tudo sim!”

O início.

“Tudo é sempre magnífico...”

“No início...”

A mente oscilava entre pensamentos e lembranças enquanto o galo latejava em sua testa e ela abria e fechava os olhos. A visão mostrava-lhe o teto e a lâmpada do quarto acesa. Sua mãe ligara dizendo-lhe que iria ainda demorar por causa do trânsito.

“Droga – pensava enquanto enxugava a água que havia ficado no lugar onde antes estava a compressa de gelo – tanta correria e no final não deu em nada. Se eu soubesse que ela ainda ia demorar, estaria com esse galo latejando na minha cabeça. Merda... o que é que ela anda fazendo?”

Havia passado a maior parte do tempo sozinha em casa, desde quando conseguia ter consciência das coisas. Cedo aprendera a se cuidar, tomando o cuidado de deixar tudo arrumado para quando sua mãe chegasse.

“- Olha, quem limpou essa casa?”

“- Foi eu?”

“- E quem fez essa comida tão gostosa?”

“- Eu também!”

Quando ela ouvia essas coisas?

Tinha entre oito e nove anos.

Enquanto crescia, via sua mãe distanciando-se mais e mais, a ponto de, agora, ao chegar, ela ir direto até a cozinha, esquentar o jantar e dormir durante o resto do dia. Depois de crescida parou de se importar com a atitude da mãe. Tinha a liberdade de sair para onde bem entendesse e de fazer o que quisesse, certa de que nada faria diferença para ela.

 

“Quantos caras ela já deve ter namorado? Ela nunca trouxe ninguém aqui em casa, mas tá sempre de conversa no celular quando tá de folga. Às vezes, quando chega do trabalho, diz que vai dormir, mas fica o resto da noite conversando. Tem final de semana que ela diz que vai trabalhar, mas deixa a farda em casa e leva umas roupas escondido... hah! Ela pensa que eu sou burra!”

 

Chegou à conclusão de que sua mãe era a pessoa com quem mais esteve na vida, mas que, ao mesmo tempo, era-lhe uma completa estranha. Em compensação...

 

“Com a ‘estranha’ não foi assim...”

 

O gelo estava bem menor, o galo tinha parado de doer, em compensação, vinha-lhe uma enxaqueca terrível. Levantou-se e foi até o quarto da mãe, onde havia no criado-mudo, uma pequena valise de plástico com alguns remédios. Tirou um pequeno vidro com o que pensou serem aspirinas e foi até a cozinha, onde encheu de água um enorme copo de vidro e retornou ao quarto da mãe. A cama era maior e o colchão mais macio. Perfeita para uma soneca. Tomou a aspirina e a engoliu com um gole de água, depois se deitou e acomodou a cabeça no travesseiro.

 

“Não – continuou ela o pensamento interrompido – com a ‘estranha’ tudo foi mais fácil. No tempo em que ela não era  ‘Estranha’, claro! Naquela época ela se chamava Clara. Quer dizer, ainda continua se chamado assim, mas não pra mim. Saímos, uma da vida da outra... daquele jeito...”

 

Fecha os olhos e respira fundo.

- Droga, a cabeça continua doendo!

Fechava os olhos respirava fundo.

“Como tudo foi tão fácil”

“A conversa fluía tão bem”

“A gente sempre tinha assunto”.

O sono vinha em ondas, mas a enxaqueca não parava...

Levantou, sentou-se na cama e toma mais dois comprimidos.

“Essa dor de cabeça que não para.”

 

Deita-se.

“Hah! Sabe, uma das coisas mais estranhas na vida é quando você descobre coisas novas a partir de alguma coisa ou de uma pessoa que você já conhecia. É como um novo início. Tipo, quando a visão que você tem de uma pessoa muda, ou quando você descobre um sentimento novo, por trás de um antigo, ou quando uma relação vira um outro tipo de relacionamento. Você acha que já sabe tudo sobre aquela pessoa, mas, de repente... entra num novo nível de intimidade”.

- Foi assim com a Clara, quer dizer, com a Estranha – disse para si mesma e a sua voz soou como se viesse de outra pessoa – parecia que não havia mais o que a gente podia descobrir uma da outra até que...

“- Tu também sente, né? Quer dizer... sabe do que eu tô falando né?

- Sei sim... e ... sim, eu também sinto!”

A dor de cabeça não diminuía. Lembranças e pensamentos se confundiam entre recordações agradáveis e indesejáveis.

“- Ei, aqui é um lugar de família, né canto pra essas sapatão ‘tarem se esfregando não!”

“- ‘Bora dá um pau nessas duas sapata... assim elas aprende a gostar de home de verdade!”

“- Corre Alice! Corre!

“- Clara! Claraaaa!”

Sons de gritos, sangue e ossos partidos.

Depois a distância.

E as ligações...

“- Fica longe da minha filha! Ela não precisa da companhia de uma degenerada como você não!”

“Fica longe...”

“... não precisa da companhia de uma degenerada...”

“...degenerada...”

“...degenerada...”

E por fim...

 

“Clara! Clara, que houve! Você não fala mais comigo, não responde as minhas mensagens... Que tá acontecendo...”

 

E na caixa de mensagens:

 

Mensagem Bloqueada!

 

Clara sumiu...

O fim veio, repentino e silencioso...

E depois...

A indiferença se fez presente na ausência, apagando os vestígios da intimidade de outrora. Até que não se tornassem em outra coisa além de...

- Estranhas... é isso que a gente é uma pra outra agora!

Foi quando o ciclo da intimidade finalmente se encerrara.

Parecia que nada tinha acontecido.

Parecia que tudo tinha sido apenas um sonho, uma fantasia da sua cabeça.

Mas se tudo tinha sido irreal, por que a sensação de algo ter sido quebrado dentro dela? Por que a irreversível ideia de que algo lhe tinha sido roubado e que não teria mais de volta? Por que a grande sensação de ser uma grande idiota?

Cabeça doendo.

Tontura.

Comprimidos.

E mais comprimidos.

Tomava-os junto de grandes goles de água. O líquido saía pelos cantos dos lábios, descendo pelo pescoço, enquanto o quarto parecia rodopiar em velocidades ainda maiores.

A última coisa de que se lembrara era do barulho da chave, a porta sendo aberta e a mãe perguntando por ela. Ainda lembrava de ter se levantado e ido até a porta do quarto com o copo em uma mão e vidro de remédios em outra.

O barulho de algo caindo no chão e o som de vidro se partindo fez com que a mãe viesse até o seu encontro e a encontrasse estendida no chão, próxima de uma pequena poça de água e cacos de vidro. Na outra mão a filha segurava um vidro de antidepressivos.

- Alice! Alice!

Lembrava que a mãe gritava pelo seu nome, mas a voz dela ia ficando mais e mais distante, como a voz que se escuta de uma pessoa da janela de um ônibus e vai ficando mais difícil de ouvir, à medida que o veículo vai se distanciando.

Alice sentia que sua consciência estava partindo, despedindo-se da realidade e deslocando-se para outro lugar...

Mas para onde iria?


CONCLUI NO PRÓXIMO POST

PARA LER CLIQUE AQUI! 

MAS ANTES DE SAIR...

CONFIRA NOSSO ANÚNCIO ABAIXO!


                    


                  _____________________________________


A palavra independente ergue-se contra o silêncio.
Sem editoras, sem agências, sem patrocínios — apenas o ímpeto criativo e o desejo de existir em letras.

Este site é a casa de um escritor, mas pode ser também a sua.
Cada apoio, cada leitura, cada gesto mantém acesa a chama da literatura livre.

🌿 Apoie este espaço.
Apoie a resistência da palavra.
Dê voz ao que nasce sem amarras

Leia abaixo como você pode apoiar o nosso trabalho e manter este site funcionando...



Crônicas do País do Absurdo reúne pequenas histórias que nascem de um misto de humor, afeto e aquele desconforto bom de quem reconhece, nas entrelinhas, um retrato do País onde a gente vive.  CLIQUE AQUI!

Além desta obra nosso trabalho abrange outros títulos de ficção e não-ficção a preços acessíveis. Venha conhecer nossa página na Amazon!


📚 Em nossa página da Amazon você pode encontrar outros livros que também nasceram desse desejo de contar histórias que tocam e provocam. Corre lá e vem conferir CLIQUE AQUI

E se, de alguma forma, o nosso trabalho te alcançou… não hesite em apoiar o nosso site!

Envie qualquer valor para o Pix: 85-997317734 (Michael Melo Bocádio) e ajude-nos a manter este site funcionando. Fortalecendo o trabalho de autores independentes você estará também apoiando a Literatura brasileira. 

Cada quantia sua é um passo a mais para seguirmos trabalhando e garantindo que a literatura independente siga existindo, resistindo e emocionando.

Se você pode ajudar, faça isso agora!
Vamos juntos fortalecer a literatura nacional e continuar contando – e recontando – quem somos. 



Comentários

Consentimento de Cookies

Formulário de contato

Nome

E-mail *

Mensagem *

Total de visualizações de página