ENSAIO LITERÁRIO - A HISTÓRIA E A ARTE DE CONTAR HISTÓRIAS: ENTENDENDO A DINÂMICA DA REPRESENTAÇÃO DE PERSONAGENS REAIS EM HISTÓRIAS DE FICÇÃO (PARTE 2)
(Advertência: se você está lendo pela primeira vez, volte para a postagem do dia doze de maio e prossiga até aqui)
A História e a arte de contar histórias
Vamos
começar, damas e cavalheiros, ladies and
gentlemen, pela nossa última pergunta. O
aspecto literário da coisa toda que apresentamos até aqui está na relação de histórias de ficção baseadas
em fatos e personalidades históricas com suas referências da vida real!
Quer dizer: a relação de uma personagem com
a personalidade histórica que lhe deu origem.
Apesar
desta relação não estar restrita a literatura, ela envolve todas as formas de narrativas de ficção,
sejam elas no papel ou na dramaturgia (palavra
hoje substituída pelo “americanalhado” termo “live action” pelos nossos “influencers” da cultura pop), ela tem na palavra escrita o seu ponto de origem,
afinal, não há série, filme ou mesmo peça de teatro,
que não comece com o texto escrito.
Para
apresentar nosso ponto de vista vamos nos valer não apenas de exemplos literários como também de títulos de produções cinematográficas referentes ao cinema
ianque, não pela sua
“qualidade”, (cada dia
mais questionável hoje,
para dizer o mínimo!) mas porque, certamente, é muito mais fácil que você se lembre mais dessas referências hollywoodianas do que se eu citasse
apenas histórias de livros ou filmes do cinema francês,
italiano, ou alemão...
Vamos começar
aqui com a constatação mais óbvia...
Vivemos
hoje uma clara inversão de valores no que se refere à nossa relação entre ficção e realidade!
Como
assim?
A partir
do início do nosso século,
com a criação dos reality shows
e depois, com o aparecimento das redes sociais e dos profissionais influencers produtores de... “conteúdo”! A vida real cotidiana, aparece-nos como objeto de entretenimento.
Essas atrações
da vida cotidiana que vão desde de reels protagonizados
por pets até lives de desafios onde
jovens arriscam suas vidas, apenas
para viralizar na internet e, com isso, aumentar os seus dividendos com monetizações, criaram um contexto onde a vida real é banalizada, ou seja,
é tratada como uma peça de...
Ficção!
Por outro lado, as histórias de ficção,
sobretudo as narrativas audiovisuais
são levadas exageradamente a sério, quase como se os personagens fictícios se tratassem de pessoas reais. Basta, por exemplo,
você observar a reação de comunidades consumidoras da indústria do entretenimento que ficam profundamente revoltadas, se a etnia de um personagem de... ficção, é alterada na adaptação de um
tipo de mídia (um livro, uma HQ, um jogo de videogame) para outra (geralmente o cinema ou a T.V)!
Imagine
então a mudança de gênero de uma personagem que... não existe!
Meus Deus!
Que pecado
mortal!
Quando os estúdios ou redes de televisão ousam cometer tal sacrilégio,
logo aparecem as manifestações, petições, boicotes, sem contar as tradicionais campanhas de ódio aos atores
e atrizes (que estão apenas fazendo o seu trabalho)
que hoje se tornaram tão comuns quanto a
indústria de Fake News.
O que dizer, por exemplo, da reação de determinados “fans”,
quando a Amazon, ao anunciar o
elenco da série Anéis de Poder (inspirada em parte da obra de J. R. R
Tolkien) e, nele, vemos a presença de
atores negros interpretando elfos e... - que coisa mais indigna! – uma mulher aparecendo como protagonista, levantando uma espada!
Todos correram
para consultar livros,
cartas ou qualquer
documento do “cânon” para polemizar se as mudanças
dos personagens eram ou
não permitidas (sabe-se lá por
quem).
Veja-se,
não estou aqui discutindo o mérito dos produtos em si, nem fazendo juízo de valor sobre a sua atitude diante da
indústria cultural que ganha dinheiro
às suas custas,
enquanto você polemiza
contra marvetes ou decenautas!
O que quero chamar atenção é com relação
ao nosso comportamento social na forma como lidamos
com a ficção em nossas vidas,
sobretudo, no que tange especificamente a
retratação de personalidades históricas em obras
de ficção!
Quanto
a este aspecto, a inversão de valores a que mencionei é apenas o aspecto exterior do problema. Em minha opinião, a forma como lidamos subjetivamente com personagens de ficção, sejam estas figuras ficcionais, sejam
personagens inspirados ou baseados em pessoas
reais envolve um problema mais amplo e mais profundo
que vou tentar
abordar ao final deste ensaio, mas antes...
A Ficção Narrativa, o Marketing
da Indústria do entretenimento e o
Senso-Comum
No
caso, por exemplo, da história estrelada por Bullock, a rigor, a história é mesmo falsa, mas não porque se
trataria de uma peça de ficção criada
pelo casal Tuohy sobre si mesmos, ela é falsa por se tratar de uma obra
de... ficção!
Mas eles não anunciaram se tratar de fatos reais?
Aí
que está, jovem Padawan: uma narrativa de ficção, mesmo quando diz inspirar-se ou
basear-se em fatos e pessoas reais
não deixa de ser...
Ficção!
E
aqui, começa um dos grandes problemas que envolveram os casos que aludi na introdução deste texto. Há em nosso senso- comum uma desinformação muito frequente
sobre a relação entre histórias de
ficção e seu material de origem, que, em grande parte, tem a ver com a forma com que as produções de narrativas baseadas
ou inspiradas em fatos históricos
(sejam eles de história recente ou remota) exploram: a simetria deste tipo de narrativa
com a realidade.
Esta
desinformação, em parte, é estimulada pelas campanhas de marketing de obras do
gênero, levando (direta ou indiretamente) a audiência a pensar que a fantasia
aqui cederia espaço
à realidade.
Ledo
engano!
Mesmo
histórias baseadas em fatos reais, por exemplo (onde os fatos deveriam ser mais levados em conta) não deixam de ser... ficção! Nem nestes casos, a fantasia
inerente ao ato de contar histórias
de ficção não deixa de estar presente... por quê? Porque a seleção
de quais elementos da realidade serão
levados em conta
para contar aquela história fica ao sabor daqueles que estão contando a narrativa. Ela pode ser praticamente integral, parcial ou apenas
uma simples referência!
E
quer saber?
Tá tudo bem!
Os
criadores têm – pelo menos numa democracia deveriam ter – toda a liberdade de retirarem da realidade
apenas os elementos que desejarem,
sabe por quê? Porque eles não estão documentando a história eles a estão re-apresentando
ela! Sabe o que isso significa? Significa tomar a realidade
e re-construí-la, apresentando uma composição que não coincide – e nem deve coincidir –
diretamente do objeto que
ela tomou como referência!
A linguagem de
uma representação artística é totalmente diferente da linguagem científica. Na primeira eu tenho uma linguagem baseada
no simbolismo, mesmo quando
abordo questões ou fatos da realidade, enquanto, na segunda, busco
descrever o objeto
em todas as suas nuances.
Mas a comercialização destas histórias de ficção baseadas
ou inspiradas em eventos e
personalidades reais não é a questão mais decisiva!
O marketing em si não tem força
suficiente para mudar a percepção
do público quanto à uma obra
de arte desta
natureza. Mas não antecipemos
os resultados, vamos aqui continuar essa reflexão, tentando dialogar com você sobre a natureza de uma personagem e como esta se relaciona com o real.
Parece estranho
ter de falar do óbvio
(como nos alerta
Brecht) mas estamos em tempos onde o óbvio não é
assim tão evidente.
CONTINUA
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