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ENSAIO LITERÁRIO - A HISTÓRIA E A ARTE DE CONTAR HISTÓRIAS: ENTENDENDO A DINÂMICA DA REPRESENTAÇÃO DE PERSONAGENS REAIS EM HISTÓRIAS DE FICÇÃO (PARTE 4)

(Advertência: se você está lendo pela primeira vez, volte para a postagem do dia doze de maio e prossiga até aqui)

Personagens e as Narrativas Históricas



E aqui chegamos ao controverso caso da noção de personagem que se confunde com a de personalidade, quando tratamos de narrativas de caráter histórico, sejam elas inspiradas ou baseadas em fatos reais.

A rigor, o fato de autores se utilizarem de acontecimentos e personalidades históricas como material para a construção de personagens e enredos de ficção está nas origens da própria arte literária.

Durante muito tempo, acreditava-se que a Ilíada e a Odisseia de Homero, (assim como os poemas Teogonia e Trabalhos e Dias de Hesíodo) eram narrativas cuja função cumpriam apenas um papel sistematizador dos mitos e lendas locais. Tal unificação estava relacionado com o surgimento das cidades-estado a partir das tribos e clãs locais que ocorrem no período de transição entre o final do período homérico e o início do período arcaico. A questão é que, poucos, ou quase ninguém que tivesse tido contato com as obras atribuídas a Homero poderiam imaginar que a própria cidade de Troia fosse real, muito menos o conflito entre os troianos e os aqueus.

No entanto, eis que, no século XIX, um excêntrico milionário chamado Heinrich Schliemann (considerado por muitos um dos pioneiros da arqueologia) seguiu as indicações de Homero contidas na Ilíada e veja só...

Ele descobriu não apenas uma Troia, mas seis! A cidade em questão havia sido alvo de vários conflitos e guerras e era sempre reconstruída exatamente no mesmo lugar, sobre os escombros da anterior. O fato é que...

Troia realmente existiu!

Quanto à Guerra de Troia? Há poucas evidências que confirmem com exatidão, mas também é possível que tenha ocorrido. Agora, por mais que se tratasse de um conflito real, é improvável que as figuras de Helena, Heitor, Páris, Menelau, Agamêmnon, Aquiles e Odisseu foram descritas nestas narrativas tal como realmente existiram em seus pormenores. Na melhor das hipóteses, Homero utilizou-se de personalidades históricas como referência (quer dizer, como ponto de partida) para compor... personagens!

entendendo a diferença?

Vamos mais adiante, ao próprio teatro grego. Durante a batalha de Salamina (a batalha que deu a vitória dos gregos sobre os persas), um dos combatentes que vivenciou o conflito tornou-se teatrólogo e escreveu uma peça abordando exatamente este conflito intitulada Os Persas.

Seu nome?

Ésquilo!

Simplesmente um dos maiores dramaturgos que existiram!


Ésquilo
tentou fazer uma reconstituição pormenorizada do conflito? Não! Mesmo porque, o objetivo de sua representação era louvar a coragem dos gregos (em especial os atenienses!). A representação tinha, portanto, como objetivo, despertar uma determinada emoção, servir como elemento catalizador de uma emoção coletiva (que poderíamos chamar de catarse) cujo objetivo maior era fortalecer o sentimento de unidade entre os habitantes e sua própria cidade.

Assim, todo o enredo da peça, a ação dos personagens, suas palavras, seu comportamento, se desenhou em função deste objetivo e não da reprodução de fatos históricos tal como aconteceram.

Está ficando claro agora?

Então deixa eu falar diretamente para que você entenda melhor...

Personalidades históricas, ao serem retratadas em histórias de ficção, TORNAM-SE PERSONAGENS!

Como assim?

Simples, você acha que o D. Pedro II que aparece em O Xangô da Baker Street de Soares é o verdadeiro D. Pedro Alcântara, ou procura reproduzi-lo nos seus mínimos detalhes? 



Não! 

Você acha que o Lampião que aparece em A Chegada de Lampião no Inferno é o cangaceiro que morreu em 1932?



Ao tomar uma personalidade real para uma obra de ficção, ou mesmo numa produção teatral ou cinematográfica de um acontecimento histórico (como Zumbi, líder do Quilombo de Palmares ou o Tiradentes da Inconfidência Mineira retratados pelo Teatro Arena), estou indo buscar, na historiografia ou na biografia daquela personalidade, elementos para a composição de uma personagem.


A ação desta personagem (tenha ela sua origem na fantasia ou na
realidade histórica!), no entanto, está subordinada ao enredo da história e é aí que reside a licença poética, pois o enredo obedece aos critérios de dramaticidade e não necessariamente à sequência dos fatos históricos.

É, portanto, em função do enredo que posso fazer D. Pedro II conversar com Sherlock Holmes ou fazer com que Dimitri Borja Korozec – protagonista de O Homem que Matou Getúlio Vargas - seja parente do mais controverso presidente da República que o Brasil teve; ou fazer Lampião ir para o inferno, passar pelo purgatório e apontar uma carabina para S. Pedro no Céu, como a literatura de Cordel costuma fazer.

Mas a subordinação da personagem ao enredo não diz respeito apenas à ficção exagerada da realidade, ela também se relaciona com obras de ficção que se inspiram diretamente em fatos reais ou procuram trazer uma reconstituição “aproximada” destes.

Será que Júlio César, Brutus e Marco Antônio retratados por Shakespeare em sua peça Júlio César coincidem diretamente com as personalidades históricas que lhes deram origem? 


Os
historiadores de dinastias britânicas nunca cansam de repetir que o soberano Ricardo III jamais teve qualquer um dos defeitos físicos retratados pelo famoso teatrólogo britânico em sua peça Ricardo III. 



Será que Luís XIII, Ana da Áustria, Cardeal de Richelieu, ou o próprio D'Artagnan, Capitão dos Mosqueteiros, personagens históricos retratados por Dumas em Os Três Mosqueteiros estão ali reproduzidos em seus pormenores?

Evidentemente que não!

Esta distorção na caracterização de personalidades reais em histórias de ficção SEMPRE EXISTIU! e os escritores, roteiristas e cineastas nunca foram considerados culpados ou chamados de mentirosos por seus leitores e expectadores, pelo fato de que as personalidades históricas retratadas em suas histórias não passarem  de... PER-SO-NA-GENS!

Este pressuposto vale não só para literatura, como para outras mídias que produzem histórias de ficção!

Você acha que a interpretação de Richard Nixon feita por Anthony Hopkins em Nixon, filme dirigido por Oliver Stone em 1995, corresponde literalmente ao ex-presidente americano homônimo?

Sinto lhe informar que não!

Há inúmeros filmes que contam a biografia de Elvis Presley e, em todas, vemos uma figura que é retratada diferentemente, mesmo abordando os mesmos acontecimentos. Todos sabem que Jack e Rose vieram da cabeça de James Cameron, mas é em função da história de amor entre ambos que ele reconstitui o naufrágio real do Titanic. O cantor e compositor Erasmo Carlos, em uma entrevista antes de morrer, disse que nunca andou de moto, mas, no filme  o ator e cantor  Shay Suede anda de moto em várias cenas.

Por quê?

Porque o ator interpreta um personagem chamado Erasmo Carlos, baseado no cantor e compositor Erasmo Carlos.

A retratação histórica de uma época ou de uma personalidade histórica em particular numa obra de arte, é sempre uma obra de ficção, embora busque mais diretamente suas referências na realidade que qualquer outro tipo de narrativa.

Deu para entender a diferença?

Este fato, apesar de ser amplamente conhecido pelos ficcionistas, nem sempre é levado em conta também pelo público, mesmo nas parcelas mais intelectualizadas (haja vista a reação dos professores de História com o sacrílego filme de Ridley Scott).

E aqui vem a pergunta... Por quê?

Por que temos hoje uma compreensão tão literal de uma obra de arte a ponto de seu aspecto simbólico ser praticamente esquecido pelo público, embora, desde sempre, as narrativas baseadas em fatos históricos sempre se propuseram a ser uma representação simbólica destes fatos? Por que buscamos – ainda que forçosamente – fazer com que uma obra de representação se torne a reprodução da realidade?

Vamos descobrir?

CONTINUA...

PARA LER A PARTE 5:  CLIQUE AQUI!

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